Sucessivos abortos numa mesma mulher, partos seguidos da morte da criança recém nascida, morte de crianças ou jovens, repentinas e associadas a estágios significativos de vida, tais como mudanças nas fases de crescimento, aniversários, casamento ou nascimento do primeiro filho, são identificados como acontecimentos ligados aos Àbíkú.
O que é “Àbíkú”?
A tradução literal é “nascido para morrer” (a bi ku) ou “o parimos e ele morreu” (a bi o ku), designando crianças ou jovens que morrem antes de seus pais. Há, assim, dois tipos de Àbíkú: o primeiro, Àbíkú – omode, designando crianças e o segundo, Àbíkú – Agba, referindo-se a jovens ou adultos que morrem, via de regra, em momentos significativos de suas vidas e sempre antes dos pais, apresentando nisso uma alteração da ordem natural que socialmente é aceita e entendida como: aqueles que chegaram ao Aiyé (mundo físico) primeiro, voltam primeiro ao Orún (mundo espiritual). Nessa questão, além da lógica natural, está presente a garantia da continuidade no Aiyé e a certeza da lembrança e do culto ao ancestral que deixa descendentes que recontarão sua história ao longo dos tempos, garantindo sua “sobrevivência” na comunidade.
No Orún vive um grupo de crianças chamadas Emere ou Elegbe e este grupo constitui o Egbe Orún Àbíkú, ou seja, sociedade das crianças que nascem para morrer. Contam os mitos que a primeira vez que os Àbíkú vieram para a terra foi em Awaiye e constituíam um grupo de duzentos e oitenta, trazidos por Alawaiye, chefe deles no Orún. Na encruzilhada que une o Orún ao Aiyé, ikorita meta, todos pararam e vários pactos foram feitos, definindo o momento particular do retorno de cada um ao Orún. Alguns voltariam quando vissem pela primeira vez o rosto da mãe, outros quando casassem, um terceiro grupo voltaria quando completassem determinado tempo de vida, um quarto grupo voltaria quando tivessem o primeiro filho, e assim por diante. E o carinho dos pais, o amor que recebessem ou os presentes não seriam capazes de retê-los no Aiyé. Alguns assumiram o compromisso de que nem nasceriam. Esse pacto deveria ser cumprido e os seus companheiros no Orún manterem-se presentes na sua vida, interagindo no seu dia a dia, para que não o esquecessem e retornassem ao Orún tão logo o momento pactuado ocorresse.
Como chega a ocorrer o nascimento ou a manifestação de um Àbíkú em uma gravidez? O Ioruba acredita que a acção do Àbíkú ocorre por determinação do destino da mãe, ou por força de magia/feitiçaria, ou por condições acidentais. O Prof. Sikiru Salami e a Profa. Dra. Iyakemi Ribeiro, na sua monografia “Ayedungbe: a terra é doce para nela se viver – rito na luta contra a morte de Àbíkú”, definem essas condições acidentais como “aquisição inadvertida de um Àbíkú por uma mulher grávida que não tenha tomado os necessários cuidados para evitar isso”. Existe a crença de que uma mulher grávida, ao passar por determinados locais em que os Àbíkú se estabelecem, se não estiver devidamente protegida, pode ver-se invadida por este “espírito” e tornar-se sujeita à gravidez de um Àbíkú. Por isso cuidados especiais são tomados pelas mulheres tão logo tenham consciência do estado de gravidez. Não é raro que mulheres grávidas carreguem junto a barriga um “ota”, devidamente preparado, para evitar essa “invasão” por parte de um Elegbe. Sacrifícios, oferendas e rezas são feitas também com o objectivo de evitar que uma mulher tenha filhos Àbíkú ou que, grávida, venha a ser “invadida” por um deles.
Deixando de lado condições acidentais ou efeito de magia/feitiçaria, temos observado que a ocorrência de Àbíkú numa mãe invariavelmente repete uma história familiar que podemos reconhecer procurando os seus antecedentes. Ou seja, podemos procurar nos antecedentes familiares da mãe para constatar, invariavelmente, que este Àbíkú vem se fazendo presente na família, geração após geração, em linha directa ou não.
Outra questão interessante é que podemos afirmar com grande precisão que alguns Odú de nascimento predispõem a ocorrência de Elegbe. Assim, temos que mulheres regidas pelo Odú Ogundabede (Ogunda + Ogbe) são naturalmente predispostas a gerarem filhos Àbíkú e, identificadas, quando ainda não são mães, certas oferendas são realizadas e alimentos são-lhes dados para prevenir a ocorrência. Ebó igualmente é feito nas situações em que já geraram filhos ou planejam gerar – um preá é colocado acima da porta de entrada da casa e um peixe acima da porta de trás, para proteger os moradores da visita dos Elegbe que ali vêm em busca de seus companheiros. Neste caso, deixam de ter acesso ao interior da casa e levarão, no lugar da pessoa que vieram buscar, o preá e o peixe. Um Orin Egbe , cantiga dedicada a Aragbo ou Ere Igbo, Orixá protector das crianças Àbíkú, fala-nos desse Ebó.
Entendemos, assim, que Egbe é cultuado e louvado com a finalidade de defender as crianças da morte prematura e oferendas lhe são feitas para que “desistam” de levar os Àbíkú de volta para o Orún, sendo um de seus objectivos a questão da manutenção dessas crianças no Aiyé. Segundo o Prof. Sikiru Salami e a Profa. Dra. Iyakemi Ribeiro, na obra já citada, “… Estabelece-se assim um jogo de forças entre Aragbo e a comunidade de Àbíkú que deseja levar seus membros do Aiyé, mundo físico, para o Orún, mundo dos mortos, mundo espiritual.
Cultos e oferendas são realizados tanto para que a comunidade de Àbíkú abra mão de levá-los de volta, como para que Ere igbo os proteja de serem reconduzidos à terra espiritual.” Todas as pessoas nascidas dentro do Odú Ogundabede, homens e mulheres, devem cultuar Egbe. Entende-se também que quem o cultua evoca as suas bênçãos em benefício das crianças do núcleo familiar. Aliás, o culto de Egbe e suas festas trazem muita semelhança com as festas e o culto que se fazem para “Cosme e Damião” e que são, muitas vezes, confundidas com o culto do Òrìsà Ibeji. Este Òrìsà e Egbe (ou Aragbo) são de distintas naturezas, justificam abordagens e tratamentos diferenciados, têm formas particulares de serem louvados, são cultuados por diferentes razões e necessidades, e os seus cultos não podem ser confundidos sob pena de incorrermos em erro de fundamento.
Por último, dois aspectos são importantes de serem nomeados: o primeiro, diz respeito ao que podemos chamar de comportamento peculiar da criança Àbíkú. São, certamente, crianças que se distinguem por este aspecto. Segundo, a resistência, na nossa cultura, que os pais têm em aceitar o facto de terem um filho Àbíkú e a dificuldade consequente em lidar com esta criança e todas as necessidades decorrentes da luta pela sua permanência no Aiyé. Cabe aí um importante papel para o sacerdote que pode ajudá-los a compreender a questão, dar-lhes orientação e acompanhamento durante todo o processo.
2 comentários:
otimo muito bom
otimo gande o nivel de comentarios e texto
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